Casas desertas

A blogosfera (alguém ainda usa essa palavra?) se tornou um acúmulo de casas e projetos de casas abandonados, um terra de fronteira tomada de poeira. Mas talvez, agora cansados da vida urbana das maiores redes sociais, acabaremos por voltar a esses subúrbios. Basta apenas não nos enganarmos, que o tempo de hoje não é aquele de ontem.

Ou, quem sabe se volta a escrever por aqui. :)

A identidade

KUNDERA, Milan. A identidade. Tradução de Teresa Bulhões de Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 (original 1997):
Jean-Marc nunca subestimava o momento mágico em que um homem escolhe sua profissão. Sabendo que a vida é curta demais para que essa escolha não seja irreparável, ficara angustiado ao constatar que nenhuma profissão o atraía espontaneamente. Com ceticismo, examinara o leque das possibilidades que se ofereciam: os promotores, que consagram toda a vida à perseguição dos outros; os professores, sacos de pancadas de alunos mal-educados; as disciplinas técnicas, cujo progresso traz juntamente com uma pequena vantagem uma enorme nocividade; o falatório, tão sofisticado quanto vazio, das ciências humanas; a arquitetura de interiores (ela o atraía por causa da lembrança do avô, que era marceneiro), completamente sujeita aos modismos que detestava; a profissão dos pobres farmacêuticos, reduzidos a vendedores de caixas e frascos. Quando se perguntava: que profissão escolher para toda a minha vida? seu foro íntimo caía no mais embaraçado dos silêncios. Se no fim tinha se decidido pela medicina, não obedecera a nenhuma vocação secreta mas a um idealismo altruísta: considerava a medicina a única ocupação incontestavelmente útil ao homem e aquela cujos progressos técnicos trazem um mínimo de efeitos negativos.
[...] Assim, estudou medicina durante três anos antes de abandoná-la com um sentimento de naufrágio. O que escolher depois desses anos perdidos? A que se agarrar se seu foro íntimo continuava tão mudo quanto antes? Desceu pela última vez a grande escadaria externa da faculdade com o sentimento de que iria ficar sozinho na plataforma de uma estação da qual todos os trens haviam partido.

Milan Kundera

O futuro do clássico

Salvatore Settis
Um dos prazeres no reativar esse blog foi descobrir nas estatísticas de acesso que desde agosto, quando publiquei aquela cronologia literária de Ulisses, algumas visitas são devidas a uma rápida menção que fiz do ensaio Il futuro del classico (2004) de Salvatore Settis. Suas teses parecem suscitar interesse mesmo sem uma publicação em português.

Como dizia no post, ano passado traduzi o inteiro ensaio. O professor Settis foi extremamente gentil quando entrei em contato com ele (assim descobrindo, inclusive, que o ensaio já foi traduzido até mesmo em japonês, uma difusão que corrobora suas argumentações) e havia (e talvez ainda haja) alguma possibilidade de publicação no Brasil. Não posso evidentemente distribuir a tradução, mas espero não haver problema em difundir aqui dois parágrafos, um do capítulo inicial e outro daquele final. Uma isca para capturar esses interessados que falam português e deixar com água na boca os demais.

SETTIS, Salvatore. O futuro do clássico, tradução de Tiago Tresoldi:
Em 1967, Arnaldo Momigliano proferiu em Erice, na Sicília, uma palestra para estudantes de liceu (o contexto era o curso de orientação pré-universitária organizado pela Scuola Normale Superiore de Pisa). Seu tema era o estudo da história antiga, grega e romana. Momigliano abriu essa palestra, até onde sei nunca publicada, com uma pergunta: por que estudamos a história antiga? Há duas formas muito diferentes, e na verdade opostas, de se responder a essa pergunta, disse ele: uma é afirmar que todos os acontecimentos humanos, de qualquer tempo e lugar, são merecedores de estudo e interesse; outra, que os indícios de nosso passado (no caso da Itália, por exemplo) na cultura, na língua, nos monumentos, nas instituições, na paisagem, são tão imponentes que nos intrigam e forçam a estudar o passado para compreender uma parte importante de nós mesmos. Se adotarmos a primeira resposta, para um italiano será completamente indiferente estudar a história ou a arte da China antiga ou da Roma antiga; se seguirmos a segunda, o estudo da China antiga terá um significado especial para os chineses, assim como aquele da Roma antiga terá para os italianos. Mais que isso, um europeu, para entender a si mesmo, deverá levar em conta não apenas os antigos romanos, mas também os antigos gregos, os antigos hebreus e a cultura cristã dos primeiros séculos como partes imprescindíveis e interligadas de suas próprias raízes culturais. Quarenta anos depois, essa consideração ainda é válida? Em uma época dominada pela retórica da globalização, ainda é verdade que o passado greco-romano é mais "nosso" que aquele chinês? Ou a nova paisagem cultural na qual nos movemos tornou obsoleta a bifurcação então proposta por Momigliano, obrigando-nos a buscar novos caminhos?
[...] 
Por fim, deve ser lembrado que mesmo quem pretenda negar ou destruir qualquer permanência do "clássico" em nosso mundo contemporâneo deveria conhecer algo a seu respeito para evitar de, sem perceber, ser capturado por ele. Um exemplo, recentemente evidenciado por Llewellyn Morgan, nos mostra o porquê. O poeta latino Lucílio (século II a. C.) escreveu que o povo romano foi "muitas vezes vencido em batalha, mas nunca em guerra" (praelio victus, non bello). Apesar de sua obra ter se perdido, essa citação, conhecida por meio de Nônio Marcelo (século IV d. C.), foi popularizada no Renascimento por Erasmo de Rotterdam, constituindo desde então um topos difundidíssimo. Tão difundido, aliás, que hoje é usado repetidamente – ignorando-se sua origem – em polêmicas contra a cultura ocidental. Assim fazia um documento vietnamita, segundo o qual "o Vietnã perdeu muitas batalhas, mas nunca uma guerra"; assim faz o Partido pela Libertação Islâmica (um grupo extremista que reivindica a reconstituição do Califado), segundo o qual "o Islã perdeu algumas batalhas, mas sempre venceu as guerras"; assim faz o nigeriano Dahiru Yahya, que ao defender a introdução em seu país da shariah como resposta a qualquer influência ocidental (e em especial da "cristandade latina") declara que, nos periódicos embates contra o Ocidente, o Islã "venceu e perdeu muitas batalhas, mas nunca perdeu a guerra". Essas invectivas contra o Ocidente se nutrem, contra sua vontade, de fragmentos e farrapos de cultura "clássica" ocidental. Ignoram sua origem, mas justamente por isso mostram até que ponto uma tradição cultural tida como derrotada ainda seja capaz de uma forma de vida subterrânea. Algo de similar poderia ser dito quanto à Nausicaa japonesa ou à citação homérica proposta por um talibã (cfe. capítulo I); mas igualmente pode ser dito do difuso citacionismo de imagens e textos "clássicos" que permeia a cultura ocidental. O instinto de reuso do antigo através de pequenos segmentos retirados de cada contexto histórico parece reintroduzir (tanto na Nigéria quanto na Itália) um uso da história per exempla, e não segundo uma concatenação de eventos estabelecidos pela investigação histórica e ligados por vínculos de causa e efeito; desse modo, as colunas dóricas de um edifício pós-moderno, as fotos publicitárias de carros com templos gregos ao fundo, as charges de David Levine que mostram George W. Bush vestido como um imperador romano, pertencem todas a um mesmo horizonte.

Il novero degli imbecilli che si credono superiori

Giorgio Pasquali (da Wikipedia)
Ah, como era boa a academia sem as falsas modéstias e ainda mais falsas gentilezas! PASQUALI, Giorgio. Storia della tradizione e critica del testo. Firenze: Arnoldo Mondadori, 1974, p. 202:
[...] non voglio in alcun modo prender qui posizione nella questione omerica, [...] ritengo che anche il più ortodosso degli unitari, se Giove non gli abbia levato il senno o negato ogni senso di stile, ammetterà senz'altro che tratti interi della nostra Iliade sono inseriti in essa... [e in nota: Io non scrivo per gente che non crede nè allo stile nè alla analisi; secondo me questi tali restano nel novero degli imbecilli che si credono persone superiori]

[...] não quero absolutamente tomar aqui posição quanto à questão homérica, [...] creio que mesmo o mais ortodoxo dos unitários, caso Júpiter não lhe tenha tomado a razão ou negado qualquer senso de estilo, admitirá sem ressalvas que trechos inteiros da nossa Ilíada foram inseridos na mesma... [e em nota de rodapé: Eu não escrevo para gente que não acredita nem no estilo nem na análise; esses permanecem para mim na ordem dos imbecis que se crêem pessoas superiores]

Elezioni italiane in Brasile

Le elezioni italiane viste dai media brasiliani, soprattutto dalla TV Globo (da 50 anni amica fedele di chiunque si trovi a Brasilia): l'Italia ha un sistema elettorale "antico" che non garantisce governabilità (via ad un super-ultra-hiper-Porcellum!), e adesso i "mercati economici" hanno paura -- forse anche il Brasile è rischio, la "incertezza economica" potrebbe far salire i "prezzi internazionali" della benzina --, e tutto colpa degli italiani che non hanno saputo decidere tra "il proprietario del Milan" e il candidato di centro-sinistra, oltre al voto di protesta per il "comico TV" Grillo. Ma tutto ciò non importa, perchè la vera preoccupazione della "gente comune" di Roma è il conclave, lo confermano le molte interviste per strada e soprattuto la visita di Napolitano a Benedetto XVI giorni fa, loro che sono "due vecchi amici" (!!!!). Nei commenti, i più ridono e alcuni si chiedono cosa significherà per Battisti; nelle notizie che ci potrebbero interessare, ricordatevi c'è un amichevole Italia x Brasile tra qualche settimana.

Which nobody knows anyway

NABOKOV, Vladimir. Lolita, 1955 on child abuse:
We are not so much concerned, Mr. Humbird, with having our students become bookworms or be able to reel off all the capitals of Europe which nobody knows anyway, or learn by heart the dates of forgotten battles. What we are concerned with is adjustment of the child to group life. This is why we stress the four D’s: Dramatics, Dance, Debating and Dating. We are confronted by certain facts. your delightful Dolly will presently enter an age group where dates, dating, date dress, date book, date etiquette, mean as much to her as, say, business, business connections, business success, mean to you, or as much as [smiling] the happiness of my girls means to me. Dorothy Humbird is already involved in a whole system of social life which consists, whether we like it or not, of hot-dog stands, corner drugstores, malts and cokes, movies, square-dancing, blanket parties on beaches, and even hair-fixing parties! Naturally at Beardsley School we disapprove of some of these activities; and we rechannel others into more constructive directions. But we do try to turn our backs on the fog and squarely face the sunshine. To put it briefly, while adopting certain teaching techniques, we are more interested in communication than in composition. That is, with due respect to Shakespeare and others, we want our girls to communicate freely with the live world around them rather than plunge into musty old books. We are still groping perhaps, but we grope intelligently, like a gynecologist feeling a tumor. We thing, Dr. Humburg, in organismal and organizational terms. We have done away with the mass of irrelevant topics that have traditionally been presented to young girls, leaving no place, in former days, for the knowledge and skills, and the attitudes they will need in managing their lives and – as the cynic might add – the lives of their husbands. Mr. Humberson, let us put it this way: the position of a star is important, but the most practical spot for an icebox in the kitchen may be even more important to the budding housewife. You say all you expect a child to obtain from school is a sound education. But what do we mean by education? In the old days it was in the main a verbal phenomenon; i mean, you could have a child learn by heart a good encyclopedia and he or she would know as much as or more than a school could offer. Dr. Hummer, do you realize that for the modern pre-adolescent child, medieval dates are of less vital value then weekend ones [twinkle]? – to repeat a pun that I heard the Beardsley college psychoanalyst permit herself the other day. We live not only in a world of thoughts, but also a world of things. Words without experience are meaningless. What on earth can Dorothy Hummerson care for Greece and the Orient with their harems and slaves?

Por uma política do silêncio

A utilização de carros de som para fins de propaganda eleitoral, que além de tudo costuma se resumir a jingles estúpidos, por si já é um sintoma da decadência de nossa política. Exigir educação e respeito de um político é uma tarefa ingrata, mas é preciso que todos os que se sentam incomodados nos queixemos publicamente: primeiro com o candidato, depois com o TRE e em casos extremos com a polícia (além de, e sobretudo, fazer campanha negativa para o candidato e não votar nele).

Como agora é moda entre os candidatos serem "sociais" e "ligados", quase todos empregam uma equipe para marcar sua presença em redes sociais. Reclamarmos publicamente no Facebook é uma das melhores alternativas, como comprovei com um candidato que reduziu bastante a perturbação nas últimas semanas.

É fundamental conhecermos e citarmos a legislação que se aplica. Em primeiro lugar, a lei 9.504/97 (que "[e]stabelece normas para as eleições") especifica que:

O funcionamento de alto-falantes ou amplificadores de som [...] somente é permitido entre as oito e as vinte e duas horas, sendo vedados a instalação e o uso daqueles equipamentos em distância inferior a duzentos metros:
I - das sedes dos Poderes Executivo e Legislativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, das sedes dos Tribunais Judiciais, e dos quartéis e outros estabelecimentos militares;
II - dos hospitais e casas de saúde;
III - das escolas, bibliotecas públicas, igrejas e teatros, quando em funcionamento. (Artigo 39, cfe.http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504compilado.htm )
Além disso, se aplica a Resolução 204/06 do CONATRAN, (que "[r]egulamenta o volume e a freqüência dos sons produzidos por equipamentos utilizados em veículos..."), que em seu artigo 1o. especifica um teto de 80 dB a 7 metros de distância (cfe. http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/Resolucao204_06.pdf)

Sugiro e peço a todos que compartilhem essas informações e protestem: nada é pior para um político em campanha do que reclamações públicas.

O mito de Ulisses na literatura

Atendendo a pedidos (ok, ok, a um pedido), segue uma não-tão-breve história do mito de Ulisses, ou melhor minha história literária centrada em sua figura (considerem feitas as costumeiras ressalvas de parcialidade e precariedade). No discurso e na falta de citações, o texto ficou bem pouco acadêmico, mas me servirá para organizar parte da tese. Minhas fontes foram basicamente dois livros de W. B. Stanford (The Ulysses Theme [1955] e The Quest for Ulysses [1974]) e sobretudo muita pesquisa na web (a Wikipédia é sua amiga!).
Odisseu que pensa "Não, lá vem ele falar de mim!"

Está limitado à literatura: outras representações artísticas seriam em alguns momentos mais importantes, mas abusaria da extensão e precisaria de mais pesquisas. Não procrastinando, a idéia é depois expandir essa mini-história para inclui-las, pois se ficar bom pode inclusive servir a convencer o orientador para permitir algo do gênero na tese (playing with fire...). Fique claro que é mais um catálogo de aparições do que um estudo: esse, que vai envolver o "mito" e o "clássico", é justamente o propósito da minha tese. Em suma, se o tio vê isso me deserda, diria que é "uma história da literatura bem tradicional".

Bom, para nossa literatura, Ulisses inicia hoje em Homero. Não deveria haver dúvidas de que as duas épicas gregas se inseriam numa tradição artística mais ampla (como expressão literária o "Ciclo Épico", mas certamente frutífera na oralidade e nas artes plásticas ao menos) de alguma base histórica; porém, buscar antecedentes e paralelos histórico-mitológicos é de interesse para a antropologia e para a elucidação da figura em Homero -- ou seja, é válido, mas não fundamental para nossa história na literatura ocidental (efeito das leituras recentes de Frye, provavelmente). Por isso, também, disse que inicia "hoje" em Homero: sua história na literatura greco-romana não poderá prescindir desses antecedentes, assim como Homero teria sido quase supérfluo num foco medieval.

O Odisseu de Homero -- mais sobre o nome Ulisses abaixo --, sobretudo quando consideradas as duas épicas e não apenas a segunda, é uma figura ambígua e maleável, um "polítropo" como descrito no primeiro verso da Odisseia. Sua adaptabilidade seria em parte explicada pelo ambiente: nascido e criado em Ítaca, ilha de pouca pujança nos confins dos mundo grego, teria aprendido a superar uma escassez desconhecida por outros heróis de Tróia como Agamêmnon e Menelau. Mais relevante é sua ascendência, sobre a qual o bardo é reticente na medida necessária. O pai, Laertes, é uma figura pacata e prudente, distante do herói de "fama imperecível" (hat tip para Martin West) da épica indo-europeia; o avô paterno, um tal Arqueisos, é ainda mais apagado. O linha materna é a picante: sua mãe é Anticléia (nome que pode ser lido como "aquela de fama hostil", adequado para Odisseu que segundo o Homero seria "aquele que é odiado"), filha de Autólico, elemento pouco recomendável que superava a todos em mentiras e roubos (qualidades herdadas de seu pai Hermes, o trickster da mitologia grega). Um antigo adendo à tradição insulta ainda mais Odisseu, apontando que seu verdadeiro pai não era o pacato Laertes, mas uma figura mais detestável que o próprio Autólico: Sísifo (quem tem pouca intimidade com as fontes gregas costuma conhecê-lo apenas via Camus, pensando que fosse um pobre coitado injustiçado, mas tenham certeza: o rei da Tessália não prestava e seu contrapasso era mais que merecido).

Elpenor, Odisseu e Hermes
Como sempre em Homero, a genealogia tenta explicar as características do herói, paradoxais e contrastantes em Odisseu: a calma e a sensatez, derivadas de linha paterna, e a astúcia e a mentira, de linha materna. Muitos estudiosos acreditam que Ulisses e Odisseu seriam duas figuras originariamente distintas (Stanford não titubeia em inscrever o primeiro na história e o segundo na mitologia), depois reunidas: o primeiro (cujo nome teria se mantido em latim) modelo das qualidades de Laertes, o segundo (secundário, mas cujo nome teria prevalecido graças à preferência de Homero) vinculado àquelas de Autólico, Hermes e Sísifo. Não concordo, pois além das poucas evidências não apontarem nesse sentido (e ao contrário indicarem uma única figura) essa personagem ambígua é perfeitamente aceitável e, mais que isso, é interessante justamente por sua polivalência, por sua "politropia". A diferença entre os nomes de Ulisses e Odisseu, sobretudo a alternância entre /l/ e /d/, à primeira vista difícil, é perfeitamente explicada pela fonologia histórica (se trata de uma "L sabina", a mesma de "lágrima" e do par odor/olor); posição que é reforçada pelas dezenas de grafias, apenas em parte devidas a variações dialetais, encontradas em todo o mundo grego. Vou usar "Ulisses" no restante do post, mesmo quando falando de obras gregas.

O retrato homérico de Ulisses manteve sua plena força no mundo clássico até o final do paganismo, enfraquecendo em paralelo com a queda de Roma e o esquecimento do grego (se manteve certamente a Oriente, mas a literatura bizantina é justamente um dos buracos da minha pesquisa). Contudo, seu valor nunca foi paradigmático, inclusive pela tradição na qual Homero se inseria: apesar dos poucos indícios, entende-se que o segundo Homero, aquele da Odisseia, tenha sido um inovador na tradição, basicamente por um retrato positivo que parece contrastar com versões concorrentes, especialmente orais (considerem aqui inseridas todas as notas sobre as dificuldades de conciliação da mitopoética das duas épicas, textos que apresentam uma característica ritual, mesmo sem adentrarmos os meandros da "questão homérica": chamar o autor de "segundo Homero" deve deixar clara minha posição, e posso recomendar uma interessante e recente tese suíça sobre o tema aqui). As variações no retrato do herói itacense na literatura grega clássica são extremas, mesmo em um mesmo autor.
Ajax mostra que não é Odisseu

O mais antigo ataque a Ulisses que chegou até nós é de Píndaro, o "poeta conservador". Assim como entre os romanos que mais tarde encontrariam em Ulisses a prova da malícia grega -- a Graecia mendax  que seria retomada durante a Idade Média contra Constantinopla --, não é difícil entender como a ética maleável do herói homérico tenha desagradado à voz lírica da mais rígida e tradicional sociedade grega. O resultado está em algumas Odes Neméias nas quais Píndaro, ao comentar a disputa pelas armas de Aquiles entre Ulisses e Ajax, descreve com pouco favor o primeiro, recuperando para o segundo a tradição homérica que o fazia um exemplo de retidão, a versão grega de Heitor. Como todas as biografias de autores antigos, a de Píndaro é provavelmente construída em grande parte sobre sua obra, mas os episódios de engano e traição pelos quais teria passado, como seu adorado Ajax, favoreceriam o abuso contra Ulisses.

Encontramos a complexidade de Ulisses sobretudo na dramaturgia ateniense do século V, tanto em tragédias quanto em comédias. Nenhuma obra de Ésquilo sobre Ulisses nos restou, mas de fragmentos e outros indícios entendemos que seu desgosto pelo itacense era comparável àquele de Píndaro -- é verdade que se trata de uma sátira, mas por exemplo em uma dessas peças, Os coletores de ossos, Ulisses chega a ser humilhado com um pinico cheio de merda esvaziado sobre sua cabeça.

Interessante é o contraste entre duas obras de Sófocles, o Ajax e o Filoctetes, respectivamente de sua juventude e velhice. Ao contrário de Píndaro, ao encenar as disputa pelas armas de Aquiles Sófocles faz de Ulisses um exemplo de decoro e honra, uma voz que reflete sobre a fragilidade de qualquer força humana (contudo, à exceção de Atenas nenhuma personagem mostra simpatia por aquele herói astuto mas sem limites morais). Já no Filoctetes, como era de se esperar por via do mito que sustenta a tragédia, Ulisses é puro maquiavelismo e covardia, um contraponto na peça não apenas a Filoctetes, mas principalmente a Neoptolemo, filho de Aquiles.
Hécuba tece seu comentário sobre o
caráter de Ulisses

Ulisses figura em bem cinco das dezenove peças atribuídas a Eurípides, entre elas Rhesus e Cyclops. Mas encontramos o melhor exemplo de seu tratamento do mito em Hécuba, a mais detestável representação do herói em toda a tradição clássica. No episódio, narrado sem seguir a tradição homérica, Eurípides equipara os enganos de Ulisses sobre Hécuba àqueles dos políticos demagogos do século V. Não se trata de um mero momento na tradição do mito, pois a fortuna de Eurípides na dramaturgia ocidental a partir do Renascimento, ainda viva, traz consigo essa versão infame de Ulisses.

Pouco conhecemos das comédias gregas e por sua natureza é de se esperar que abusassem de qualquer personagem sem receios sacrílegos; Héracles, por exemplo, era uma vítima frequente. Mas traços e cenas encontrados mesmo em Homero (as juras de fidelidade de Penélope, o Ulisses bom-de-garfo, seu vale-tudo com outro mendigo por uma salsicha gorda) certamente contribuíram às explorações cômicas, como provado por fragmentos de Aristófanes e, antes dele, Epicarmo de Cos (aquele que eu tanto procurava alguns meses atrás).

Nessa mesma época inicia também a apropriação de Ulisses pelo discurso filosófico, também com versões dissonantes e igualmente persistente (como veremos depois, em Joyce encontramos essa prática, aprendida de Lang que a resgatara, indiretamente, dos primeiros padres da Igreja). Antístenes considerava Ulisses um filósofo cínico ante litteram, imune a humilhações, enquanto Górgias e outros sofistas o denunciavam como traiçoeiro; como era de se esperar, por sua vez o Sócrates de Platão simpatiza com ele. Mas sua grande fortuna literária viria com os estóicos e seus leitores, tanto entre os romanos (como Plutarco e Marco Aurélio) quanto entre os primeiros cristãos. O estoicismo eleva Ulisses a exemplo de um de seus principais arquétipos, o homo viator, o homem cosmopolita que constrói seu caminho pelo mundo. Nas interpretações alegóricas que começam aqui é fácil encontrar os resquícios joyceanos, como os comedores de lótus representando a entrega às tentações, Polifemo a ira sem controle e a nekyia, a descida aos ínferos, o desejo pelos conhecimentos secretos, proibidos (que reencontraremos em Dante).
Uthuze, estatueta etrusca

Como toda boa história da literatura ocidental, pulemos de Atenas a Roma. Na segunda como na primeira, Homero havia se destacado de uma tradição anterior e que certamente continuara em paralelo, principalmente por via oral e plástica: Ulisses não foi uma novidade grega introduzida pelo texto homérico quando a República conquistou as colônias da Magna Grécia e muito menos quando venceu o reino macedônio. De fato, com o nome de Uthuze (interessante post sobre as particularidades fonológicas aqui) Ulisses aparece já na cultura etrusca, e mesmo aquela que seria a referência mais antiga a seu respeito, uma representação do naufrágio nas costas da Sicília, vem de Ischia, ilha da baía de Nápoles.

É claro que a presença anterior na península italiana não nega ou diminui a importância de Homero na transmissão do mito. A própria literatura latina começa, a bem dizer, com Ulisses: a menos que se teime considerar alguns versos satúrnios (mais antiga forma métrica latina) e alguns fragmentos textuais como ponto de partida, a literatura latina tem origem no séc. III a.C. quando Lívio Andronico, um escravo grego, traduziu a Odisseia em um latim literário, valendo-se justamente do metro satúrnio. Só nos restaram alguns poucos versos dessa obra odiada pelos adolescentes romanos obrigados a decorá-la, mas eles mostram a singular obediência ao modelo homérico e a inteligência cultural nas adaptações mitológicas (como a Musa que no primeiro verso se transforma na Camena). A obra seria logo abandonada quando a elite romana aprendesse a ler grego, usando diretamente Homero e seu entorno como fonte.

Os tratamentos contrastantes de Ulisses se mantinham em Roma. Assim como Cícero, que chegara a justificar o fingimento para escapar da guerra de Tróia em nome do amor familiar, lendo os estóicos Horácio aprendera a admira-lo, apesar de descreve-lo como "duas caras". Sêneca o louvava em seus escritos filosóficos como modelo de patriotismo e prudência (tal como Penélope, elevada a modelo de fidelidade para as matronas romanas), mas seguia Eurípides em suas tragédias; vale lembrar sua Troades, modelada sobre a peça homônima do grego, na qual o itacense se torna um artesão do crime, mas onde ao mesmo tempo a criminalidade parece ser explicada pela obediência devida aos superiores.
Ulisses e Calipso, Arnold Böcklin, 1883 - a
influência do Tristia é patente

Um nome importantíssimo na constituição do mito de Ulisses ao menos até o século XX, pois sua obra foi usada durante séculos como "cartilha" de latim nas escolas europeias, é Ovídio. O poeta romano não podia deixar de simpatizar com o herói homérico, como ele exilado, como ele amante, como ele astuto. O paralelo do exílio se expressa nas Tristia, onde o sofrimento causado por Augusto lembra aquele dos grande exilados da literatura clássica, Ulisses e Enéas; as aventuras amorosas são lembradas em seus poemas eróticos e a inteligência de Ulisses vêm à tona no livro XIII das Metamorfoses, onde a disputa pelas armas de Aquiles retorna como uma oposição entre a ação e a razão.

Contudo, o grande nome para a figura de Ulisses na tradição latina é, claro, Virgílio e sua Eneida. É ele, reverenciado inclusive como profeta cristão, que guia a atitude ocidental sobre Ulisses ao menos até o Renascimento. Vírgilio convenientemente se esquece de uma antiga lenda romana na qual Latinus seria filho de Ulisses (o que em sua trama o faria avô de Lavinia e, na prática, sogro de Enéas), pelo conhecido motivo de apontar os romanos, e especialmente a dinastia juliana, como os novos troianos. Além do mais, Ulisses é o arqui-inimigo feitor do cavalo de Tróia (infelizmente aqui cabe apenas apontar, sem muitos comentários, a tradição subterrânea e paralela à virgiliana de um Enéas ímpio, não menos maquiavélico que Ulisses, que encontramos ainda em Boccaccio no séc. XIV e que aproximaria as duas figuras). Apesar dele nunca aparecer na história, seus feitos sendo narrados exclusivamente por inimigos (o que já deu margem a interpretações mais positivas da opinião de Virgílio sobre o herói), a Eneida não oferece outro Ulisses que aquele, por falta de melhor nome, "pindárico". Muitos já interpretaram a postura de Virgílio como uma inveja dos romanos em relação aos gregos. É uma posição discutível, especialmente porque transparece a preferência neo-clássica pela Grécia, com forte tempero de Winckelmann e Hegel. É preferível a interpretação mais comum da Eneida como instrumento político juliano, do qual o sentimento pró-troiano é constituinte fundamental, associada à tradição negativa sobre Ulisses.

Afinal, muitos aspectos de Ulisses que não são negados nem por seus defensores, como a mentira, pouco poderiam agradar o ideal romano do homem sério e probo, obediente à ordem e aos costumes e indissociável da hierarquia militar, como Catão e Régulo. Aliado à apologia dos troianos, é preferível apontar nesse sentimento a fonte da rispidez com Ulisses e a motivação para o surgimento, ao apagar das luzes gregas a oeste, de várias versões em prosa da guerra de Tróia, as quais se apresentavam como relatos historiográficos, geralmente testemunhos em primeira pessoa, nas quais Homero era expressamente acusado de deturpar os fatos em nome de seu filohelenismo; um mentiroso como Ulisses (ainda mais interessante é uma lenda de que Homero teria descido ao inferno para interrogar os protagonistas da guerra de Tróia e assim escrever sua épica; Ulisses, mentiroso e astuto, é quem lhe conta os fatos de Tróia junto às mentiras de seu percurso, de modo a se imortalizar no imaginário humano).
Capa da tradução de Pereira de Dares o Frígio

Duas dessas obras logo se afirmaram, o relato de Dictys o Cretense (que teria estado em campo pelo lado grego) e aquele de Dares o Frígio (lutando pelo lado troiano). Trata-se das duas obras que determinaram o desenvolvimento do mito de Ulisses na literatura européia até o Renascimento e o influenciaram até o Iluminismo, infelizmente praticamente desconhecidas hoje (até onde sei, em português há uma única tradução da segunda, de autoria da portuguesa Reina Marisol Troca Pereira, e nenhuma da primeira -- algo que espero remediar). Foi o latim simples dessas duas obras que ensinou à Idade Média a história de Tróia, com Homero já inacessível e Virgílio reservado a poucos. E foi por essas obras, nas quais é difícil encontrar características positivas ou ao menos neutras de Ulisses, que indiretamente os novos vernáculos conheceriam o itacense.

Apenas entre os doutos a ambiguidade de Ulisses se manteria ainda por alguns séculos (até o VI, aproximadamente). Influenciados pela filosofia grega, principalmente pelo estoicismo que foi base do pensamento cristão dos primeiros séculos, os pais da Igreja adotaram Ulisses como um dos poucos pagãos recomendáveis: suas aventuras serviam de analogia ao percurso do homem, especialmente no episódio das sereias, tentações luxuriosas que não conseguem vencer Ulisses o qual, em analogia o Cristo crucificado, se mantém no caminho amarrando-se a um mastro. Até mesmo Basílio de Capadócia, aquele que se alegrava pelas línguas bárbaras serem incapazes de expressas as heresias da filosofia em língua grega, louvava Ulisses, junto a outros nomes de peso do primeiro cristianismo como Clemente de Alexandria e Ambrósio de Milão. Explica-se Ulisses, geralmente no episódio das sereias, passar a decorar alguns sarcófagos cristãos da época.

Mas após alguns séculos já haveria uma mitologia judaico-cristã plenamente capaz de substituir aquela greco-romana, graças particularmente aos santos, e as controvérsias primeiro políticas e depois religiosas com Bizâncio pouco puderam freiar a pérfida figura ensinada por Dyctis e Dares. A tradição do Ulisses cristão seria retomada somente depois do Renascimento, restando à Alta Idade Média apenas os testemunhos em primeira pessoa e Virgílio, além dos comentários positivos de Horácio e Ovídio que teriam alguma influência na lírica, único lugar onde encontrar uma visão alternativa (como na Confessio amantis de John Gower [1393]).
Ilustração de um episódio não identificado em manuscrito
do Roman de Troie

É interessante como na mesma década de 1160 encontramos o remate e o começo de duas vertentes: nesses anos são completados tanto o último grande poema em latim sobre a guerra de Tróia, o De bello Troiano de Joseph de Exeter, quanto o primeiro romance sobre o tema, o Roman de Troie de Benoît de Sainte-Maure. O primeiro, com título inspirado em Júlio César e andamento de aspiração virgiliana, é uma comum épica intelectual, escrita em um latim ainda consciente do modelo clássico (na medida em que podia ser para um clérigo do interior inglês no século XII) e relevante pela cronologia. O segundo, como o próprio nome "roman" implica, inova tanto pela forma do romance medieval, com Ulisses e os demais heróis transformados em cavaleiros galantes (é afinal contemporâneo de Chrétien de Troyes e seus romances arturianos), quanto na língua, pois Ulisses finalmente começa a falar em vernáculo. Servindo-se essencialmente de Dyctis e Dares, bem como de um Virgílio talvez conhecido de segunda-mão, Benoît não seria capaz de inovar o caráter de Ulisses assim como suas vestimentas e sua língua: sob os muros de Ílion o itacense continua um mentiroso irresponsável. Mas já em sua odisséia Benoît o resguarda da hostilidade difusa e lhe confere traços mais positivos, e de qualquer modo mais favoráveis que aqueles de suas fontes. Influência da forma escolhida, talvez?

O sucesso da obra de Benoît (mais uma sem tradução ao português e que não é editada desde 1902) à época foi superado poucas vezes, sendo traduzida no giro de um centênio ao menos na Espanha, na Itália, na Alemanha, na Holanda e na Inglaterra e alcançando mesmo, ao que parece, os paises eslavos e bálticos bem como o Império Romano a Oriente. Além das traduções, houve inúmeras adaptações e derivações, num novo ciclo épico que não cabe elencar aqui, mas que deixou alguns bons frutos (entre eles a Siege of Troy de Lydgate, de 1420, ainda hoje ocasionalmente lida em cursos de literatura antiga em países de língua inglesa). É porém necessário citar uma dessas derivações: a paráfrase em latim da obra de Benoît atribuída a Guido delle Colonne (na Itália poucos concordam com a atribuição, fora da Itália parece haver unanimidade), que serviu de base para muitas dessas traduções e derivações. O caráter traiçoeiro de Ulisses que Benoît aprendera em Dyctis e Dares pouco se desenvolve em todas essas obras.
Chapeuzinho vermelho que no meio do caminho de
sua vida se perde na selva escura

Mas seguindo as influências de Benoît ultrapassamos cronologicamente a melhor, mais inovadora e mais influente exploração medieval de Ulisses: sua aparição no canto XXVI do Inferno de Dante. A cena é conhecida: em seu passeio pelo além, Dante encontra Ulisses (preso em uma chama com Diomedes -- o que faz permite supor que seu grande pecado tenha sido o roubo do Paládio, aprendido na Eneida, e não a ousadia final) entre os traidores. O grego lhe conta o final de sua vida, um tema em voga desde a Grécia antiga (também por via da profecia de Tirésias na Odisseia, que lhe previa uma "morte vinda do mar" sobre a qual Homero se cala) e que constituiria uma das duas principais formas de exploração de seu mito a partir do romantismo: movido por uma curiositas não distante daquela dantesca, um Ulisses já em tarda idade parte em direção ao desconhecido, ultrapassando as colunas de Hércules e finalmente avistando a montanha do Purgatório. A ousadia de violar o limite divino ao conhecimento humano é punida por Deus, que naufraga sua nave. Desde os primeiros comentaristas a Dante, as interpretações dessa passagem são as mais variadas, equilibrando-se entre o Ulisses proto-humanista, que desafia os limites humanos (portanto merecedor de piedade, e indicativo na trama dantesca que apenas acompanhado do lume do deus cristão isso seria possível), e um Ulisses sacrílego (exemplo da antiguidade a ser superada).

Não cabe especular aqui sobre o sentido desse episódio, esperando que fique pra tese. O importante é que encontramos novamente um Ulisses homérico: ambíguo, múltiplo, redondo. O Dante-personagem não se contenta com as fontes latinas do Dante-autor (a principal Virgílio), e pede que o danado fale por si. É assim que trascende mesmo Homero (que, na improbabilidade de Dante conhecê-lo, por não saber grego, devia ser por relatos de segunda-mão). O desejo do Ulisses dantesco pelo desconhecido e pela superação não poderia deixar de impressionar fortemente o espírito romântico, e de fato, apesar de não ter sido influente até o século XIX, ele é hoje uma das principais forças no mito, apenas Joyce sendo-lhe de certo modo imune. É o Ulisses de Dante que encontramos em Tennyson e Kazantzakis, é ele o arquétipo do explorador que vai do capitão Ahab de Melville até o David Bowman (arqueiro no nome como Ulisses no mito) de 2001: uma odisséia no espaço de Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick.

Esse mito não poderia passar incólume pelo Renascimento, quando os autores gregos voltaram a ser estudados em língua original ao ocidente. Apesar de não ser lido durante a Idade Média, quando era sujeito às acusações de Dyctis e Dares, Homero mantivera a fama de grande poeta entre os doutos (o próprio Dante colocara-o no limbo); é graças à recuperação de seu texto e de outros apologistas (em especial o Plutarco das Vidas paralelas) que Ulisses é elevado a modelo de prudência (figurando nos manuais de bom governo, por exemplo) e especialmente às primeiras traduções da Ilíada e da Odisséia que sua fama começa a se recuperar. Entre essas traduções, grande importância cabe à primeira tradução ao inglês, ainda hoje eventualmente lidas e antecedente direto da assimiliação joyceana, por George Chapman, que com toda probabilidade é o "poeta rival" de quem fala Shakespeare.
Troilus e Cressida de Shakespeare, segundo
o Google Images

É justamente Shakespeare que nos fornece o grande retrato de Ulisses no século XVI, em seu Troilus and Cressida. Nessa tragédia a história literária de Ulisses se cruza novamente com outra figura mitológica merecedora de um estudo desse tipo: Troilo, principe de Ílion filho de Príamo, morto de maneira vil por Aquiles (segundo uma tradição persistente, por ter se recusado a ele). Shakespeare recuperava uma trama já grega, encontrada também na Etrúria, mencionada por Virgílio e muito explorada a partir de, novamente, Dyctis e Dares: é justamente um dos episódios principais dos textos medievais que vimos, como o De bello Troiano, o Roman de Troie e a Historia destructionis Troiae (a paráfrase atribuída a delle Colonne). O grande tratamento literário de Troilo começaria com Boccaccio -- o primeiro autor ocidental que conhecia a língua grega -- em seu Il Filostrato, que animaria a bela versão de seu amigo inglês Chaucer, Troilus and Criseyde. Justamente em Chaucer Shakespeare aprenderia a história, oferecendo um Ulisses tão debatido pela crítica quanto aquele dantesco; pelos mesmos motivos não cabe analisa-lo aqui, sendo suficiente dizer que ele continua calculista e astuto mas por motivos aparentemente justificáveis, os quais nos permitem ler uma certa compaixão ou respeito por ele.

Ulisses começa a ser admirado na França, também a uma tradução da Odisséia [1604]: Salomon Certon, o autor, chega a comparar o rei Henrique IV ao herói itacense ao dedicar-lhe sua obra. A positividade de Certon tinha de qualquer modo antecedentes, especialmente o talvez mais famoso soneto de Joachim de Bellay, Hereux qui comme Ulysse [1558], que da suntuosidade dos palácios romanos sonhava com a doçura de sua pacata Lyré, ecoando não apenas Homero em seu episódio de Calypso, mas principalmente Ovídio que continuava a influenciar o tratamento lírico de Ulisses. Esse parêntese de apreciação francesa logo se fecharia por dois motivos principais: primeiro, a identificação da intelectualidade francesa com Roma e não com a Grécia (como mencionei anteriormente, a supremacia grega é uma herança alemã dos séculos XVIII e XIX, nesse sentido cabe recomendar o ensaio Futuro del classico de Salvatore Settis, aquela obra que traduzi ao português e que espero possa ser publicado ano que vem), encontrando em Ulisses, assim como os latinos, a expressão do negativo grego; segundo, e ironicamente, a elevação de Eurípides, que vimos nutrir pouca simpatia por nosso herói, a paradigma da dramaturgia. É assim, por exemplo, que o episódio das mulheres troianas aparece novamente em La Troade [1579] de Robert Garnier, que toma explicitamente o partido de Hécuba e Andrômaca contra um pérfido Ulisses a quem nem é dada voz para se defender. Um caso muito conhecido é a Iphigénie [1674] de Racine, que bem sabemos teria sua influência em praticamente todas as Ifigênias sucessivas, inclusive brasileiras. A literatura francesa ainda ofereceria algumas apologias a Ulisses, como no famoso Les Aventures de Télémaque [anônimo em 1699, reeditado póstumo em 1717] de Fénelon, mas as escolhas são preponderantemente negativas.
As sereias representariam a luxúria

Ulisses também figura, claro, em outras literaturas. Naquela de língua alemã, Hans Sachs escreveu várias narrativas e comédias que invariavelmente louvavam suas virtudes (confesso que ainda desconheço completamente seus textos); na Itália ele é tema constante do drama, como no conhecido Il ritorno di Ulisse in patria [1639-1640] de Monteverdi, efetivamente uma das primeiras operas na acepção atual do termo e ainda hoje encenada. Mas é na Espanha que encontramos duas grandes e influentes interpretações de Ulisses, ambas de Calderón de la Barca: El major encanto amor [1635] e sua versão cristianizada Los encantos de la culpa, na qual Ulisses se torna uma "propaganda teológica" (Stanford) que revive as leituras alegóricas dos estóicos, mas em um ambiente exótico e místico (os pós-modernos diriam "orientalista"), e que motivaria várias outras leituras alegóricas. Na literatura portuguesa, além das lembranças da Odisséia em Os Lusíadas, cabe lembrar a Ulisseia ou Lisboa edificada [1636], na qual parece iniciar a exploração literária da antiga lenda de Ulisses como fundador de Lisboa que encontramos, com três séculos de distância, no belo poema ao herói inserido no Mensagem [1934] de Fernando Pessoa.

Goethe ao explicar pra Christiane que não era
uma traição, mas o desempenho ritual do mito de Ulisses
Uma outra tradução das épicas homéricas reforçaria definitivamente, por sua qualidade e por servir de modelo a traduções posteriores, mesmo em outras línguas, o mito de Ulisses: a Iliad [1713] e a Odyssey [1726] de Alexander Pope, ainda hoje defendidas por muitos como as melhores em língua inglesa e, sobretudo, nas quais o romantismo aprendeu as histórias de Ulisses. Movido por um espírito poético na tradução e antropológico na leitura do mito, Pope defendeu repetidamente Ulisses em suas notas, acusando a seus detratores de não compreender o espírito do grego. Nessa mesma época é publicado um texto de grande influência nas interpretações alegóricas de Ulisses: a Scienza Nuova [1725] de Giambattista Vico, que como bem apontou Meletinsky em sua Poética do mito constitui, na prática, a primeira real filosofia do mito. Vico foi lido, estudado e amado por Joyce, mas também, junto a Pope, por Goethe. Esse último lia Homero no original e tão logo como se identificou com o herói preferido de Homero (chegava mesmo a justificar suas numerosas infidelidades com Christiane lembrando de como, apesar de Circe e Calypso, Ulisses sempre amara Penélope) abandonou um projeto literário que envolvia o amor de Nausicaa, não sem antes deixar suas influências no tratamento pelo romantismo alemão.

Sempre dessa época é outra grande influência em Joyce, talvez a mais influente: The Adventures of Ulysses [1808] de Charles Lamb, prosa baseada na tradução de Chapman. É fácil entender porque Lamb escolheu Chapman e não Pope: sua proposta, romântica, era de recuperar o místico, o desconhecido, o sublime, o irracional de um Ulisses que começava a ser dissecado filologicamente, como o seria por todo o 1800. Mas a grande encenação romântica do itacense é sem dúvidas o monólogo lírico Ulysses [1842] de Tennyson, em cujos setenta versos com inegáveis ecos de Dante (que, praticamente rejeitado por séculos de proclamado racionalismo, voltava à tona com os românticos) um Ulisses já idoso lembra nostalgicamente da figura passada de grandes feitos. Já estamos próximos ao contemporâneo e distantes de Homero (seu herói, sempre é bom lembrar, nunca quis deixar o lar e muito menos perambular pelo Mediterrâneo) nesse Ulisses determinado a "to strive, to seek, to fight, and not to yield".

Esgotada a estação romântica, o modernismo inaugura novos relacionamentos com os mitos. Claro que o monumento desse período é Joyce, mas antes dele cabe lembrar um poeta italiano praticamente desconhecido no Brasil, Pascoli, e seu intrigante Ultimo viaggio [1904], que já no título aponta o diálogo com Dante e Tennyson, configurando uma resposta original e surpreendente. Aqui também está o Ulisses idoso que resolve deixar Ítaca (afinal, como entendemos um pouco melhor ao ver Joyce e Kazantzakis, uma vez recuperado e elevado a cânone o texto homérico, aos autores geralmente sobravam apenas os silêncios e os interstícios desse), mas agora Ulisses nada encontra ao revisitar os territórios da Odisséia. Espaços vazios na ilha de Circe, quietude entre Skylla e Charybdis, silêncio junto às sereias e sobretudo um novo encontro com Polifemo, cujo diálogo despe de todo o heróico um Ulisses que, começamos a suspeitar, no fundo não passa de um mentiroso e de um homem comum. Pascoli é uma voz singular nessa vertente de remates à história de Ulisses, que se repetiria em Kazantzakis e mesmo no pós-moderno, como em The Penelopiad (em português, A odisséia de Penélope) [2005] da Margaret Atwood.

É impossível não citar, mas também não posso me arriscar a comentar Joyce e seu Ulysses [1922] aqui -- seu herói é mais complexo que aquele de Dante, a ao menos tanto quanto aquele dos dois Homeros. Narra o mito moderno que Joyce foi repreendido ainda criança por um professor jesuita por ter escolhido como seu herói preferido Ulisses, entre todas as personagens oferecidas pelas mitologias greco-romanas e judaico-cristã. Justamente aquele Ulisses que ele havia conhecido nas aventuras narradas por Charles Lamb, com implicações alegóricas tipicamente cristãs tomadas da tradução de Chapman.

Marilyn lendo Joyce (tenho que dar um jeito
de botar essa foto na tese)
Talvez se possa jogar uma luz sobre o texto de Joyce ao compara-lo com outro tijolo modernista sobre a figura, a continuação da Odisséia escrita por Nikos Kazantzakis. É nesse modernismo que Ulisses não apenas volta, em maneiras reconhecidamente diversas, a ser um polítripo, um homem adaptável, mas sobretudo é nessas que ele retoma sua característica de figura redonda, complexa, ambígua, a ser decifrada, na qual o valor alegórico está sim presente, mas onde Ulisses se move, articula, onde não conhecemos seus desenlaces. É claro que grandes nomes como Dante e Shakespeare já haviam em suas medidas superado os retratos planos de vilão, bufão ou herói estóico, mas é no sentimento tipicamente modernista da digestão do mito que nasce essa nova figura. Não menos interessante é como essas duas obras representem bem as duas soluções para o tratamento do mito grego que haviam restado ao autores, como comentei acima sobre Pascoli: a metáfora, usada por Joyce quando filtra a fábula homérica, e a metonímia, usada por Kazantzakis que a extende. A opinião de qual se aproxime mais do paradigma fica a critério do leitor, mesmo porque aqui realmente se dão o "diálogo" e a "ressignificação", termos tão abusados pela crítica contemporânea: ler Homero com em mente Joyce ou Kazantzakis é efetivamente diferente do que apenas ler Homero. Igualmente a cargo do leitor fica a opinião sobre as formas, se dependentes ou independentes das soluções retóricas; não se pode contudo escapar do fato do irlandês continuar a ser lido (ou ao menos a vender) até hoje, enquanto o grego é mais conhecido por Zorba, o grego e por A última tentação de Cristo -- já imagino certos professores de literatura apontando nisso, com prazer, a impossibilidade de uma épica de moldes clássicos hoje (The Odyssey: a modern sequel de Kazantzakis é um poema épico de 33.333 versos de 17 sílabas, mais longo que a própria épica homérica). Mas seu texto não é menos importante para a compreensão do papel do mito (não apenas de Ulisses) hoje.
Angelina Jolie no papel de Olímpia

Se alguém chegou até aqui deve estar cansado, e ainda faltaria o pós-moderno. Nessa ponta da cronologia, Ulisses é geralmente sujeito aos mesmos princípios da utilização do clássico que se afirmaram na cultura de massa: fragmentado, descontextualizado, pronto para ser utilizado a partir de suas diferentes figurações na história (afinal, os artistas têm à disposição múltiplos Ulisses, do antigo homérico ao moderno joyceano, do plano euripidiano ao ambíguo dantesco, do malvado pindárico ao exemplar estóico). A imponência concedida pela qualificação clássica (ou, melhor, greco-romana), reforçada pelo monumento de Joyce, ao mesmo tempo o tornam uma força de legitimação (não sendo esse um artigo, vamos dizê-lo claramente: citar Ulisses é fashion, é modinha) mas limitam os artistas chamados a se medir com ele. Qualquer Ulisses metafórico deve hoje obrigatoriamente fazer as contas não apenas com Homero, mas também com Joyce; não por acaso, feitas poucas exceções como o 2001: uma odisséia no espaço, a memória do Ulisses dantesco em Se questo è un uomo [1947] de Primo Levi e daquele ovidiano, mas com ares existencialistas, em Dialoghi con Leucò [1947] de Cesare Pavese, as obras de maior valor têm se fixado sempre no metonímico -- o que é uma pena, pois, sendo um mito, possui uma função ritual, e no nosso contemporâneo provavelmente se expressaria melhor no metafórico. Por fim, é interessante lembrar como ainda hoje se mantenha uma vertente, de grande sucesso e mínimo valor artístico, que não passa de uma nova eumerização do mito, do fornecer suas explicações racionais, de buscar o histórico no mitológico para não abrir mão da narrativa. O efeito mais visível é o apagamento dos deuses, como no filme Troy [2004] (aquele com o Brad Pitt de Aquiles, sempre melhor que a Angelina Jolie de Olímpia...) ou em Omero, Iliade [2004] de Alessandro Baricco, na qual uma interessante proposta e prática de reescrita da narrativa homérico em um texto realmente atual é destruída por uma patética exclusão dos deuses, que deixa vários episódios insolucionáveis (a framboesa de ouro vai para a narração do combate de Aquiles com o rio Escamandro explicada com um tons científicos).

Condensei alguns autores de maneira meio brutal, tem alguns silêncios que não gostaria no século XX (como o ethos homérico transplantado em outras culturas, vide a Nausicaä do vale do vento abaixo), mas aí está minha mini-história, pronta pra ser temperada com a teoria. Um roteiro que deve ajudar a acompanhar minhas argumentações mais doidas. Que venham os comentários! :)


Dante abbraccia Sordello

E nessuno più se ne stupisce: adesso in Tripolitania e Cirenaica la diplomazia del Cavaliere fa silenzi e capriole, mai dietrofront. Lontano da Firenze, mi vien da ricordare Dante che abbraccia Sordello (Purgatorio, Canto Sesto, v. 76-84):
Ahi serva Italia, di dolore ostello,
nave sanza nocchiere in gran tempesta,
non donna di provincie, ma bordello!

Quell'anima gentil fu così presta,
sol per lo dolce suon de la sua terra,
di fare al cittadin suo quivi festa;

e ora in te non stanno sanza guerra
li vivi tuoi, e l'un l'altro si rode
di quel ch'un muro e una fossa serra.
Al che ricordo il commento di Anna Maria Chiavacci Leonardi:
76. Ahi serva Italia...: la celebre invettiva, che terrà il canto fino alla fine, sospende la narrazione [dell'incontro tra Dante e Sordello]. Qui la voce personale dell'autore prende il sopravvento, per la forza di commozione che interviene a quel ricordo, più a lungo che in qualunque altro luogo del poema [...]. Irrompe qui la grande passione che tenne l'animo di Dante per tutta la vita, passione morale e politica insieme, di fronte all'ingiustizia del vivere civile, e al rovinare delle istituzioni in cui egli credeva. Il suo solenne e profetico ammonimento sui potenti della terra — che qui risuona in modo eminente — è una delle prime ragioni per le quali è nato il poema.

To blog more?

We shall see.