O futuro do clássico

Salvatore Settis
Um dos prazeres no reativar esse blog foi descobrir nas estatísticas de acesso que desde agosto, quando publiquei aquela cronologia literária de Ulisses, algumas visitas são devidas a uma rápida menção que fiz do ensaio Il futuro del classico (2004) de Salvatore Settis. Suas teses parecem suscitar interesse mesmo sem uma publicação em português.

Como dizia no post, ano passado traduzi o inteiro ensaio. O professor Settis foi extremamente gentil quando entrei em contato com ele (assim descobrindo, inclusive, que o ensaio já foi traduzido até mesmo em japonês, uma difusão que corrobora suas argumentações) e havia (e talvez ainda haja) alguma possibilidade de publicação no Brasil. Não posso evidentemente distribuir a tradução, mas espero não haver problema em difundir aqui dois parágrafos, um do capítulo inicial e outro daquele final. Uma isca para capturar esses interessados que falam português e deixar com água na boca os demais.

SETTIS, Salvatore. O futuro do clássico, tradução de Tiago Tresoldi:
Em 1967, Arnaldo Momigliano proferiu em Erice, na Sicília, uma palestra para estudantes de liceu (o contexto era o curso de orientação pré-universitária organizado pela Scuola Normale Superiore de Pisa). Seu tema era o estudo da história antiga, grega e romana. Momigliano abriu essa palestra, até onde sei nunca publicada, com uma pergunta: por que estudamos a história antiga? Há duas formas muito diferentes, e na verdade opostas, de se responder a essa pergunta, disse ele: uma é afirmar que todos os acontecimentos humanos, de qualquer tempo e lugar, são merecedores de estudo e interesse; outra, que os indícios de nosso passado (no caso da Itália, por exemplo) na cultura, na língua, nos monumentos, nas instituições, na paisagem, são tão imponentes que nos intrigam e forçam a estudar o passado para compreender uma parte importante de nós mesmos. Se adotarmos a primeira resposta, para um italiano será completamente indiferente estudar a história ou a arte da China antiga ou da Roma antiga; se seguirmos a segunda, o estudo da China antiga terá um significado especial para os chineses, assim como aquele da Roma antiga terá para os italianos. Mais que isso, um europeu, para entender a si mesmo, deverá levar em conta não apenas os antigos romanos, mas também os antigos gregos, os antigos hebreus e a cultura cristã dos primeiros séculos como partes imprescindíveis e interligadas de suas próprias raízes culturais. Quarenta anos depois, essa consideração ainda é válida? Em uma época dominada pela retórica da globalização, ainda é verdade que o passado greco-romano é mais "nosso" que aquele chinês? Ou a nova paisagem cultural na qual nos movemos tornou obsoleta a bifurcação então proposta por Momigliano, obrigando-nos a buscar novos caminhos?
[...] 
Por fim, deve ser lembrado que mesmo quem pretenda negar ou destruir qualquer permanência do "clássico" em nosso mundo contemporâneo deveria conhecer algo a seu respeito para evitar de, sem perceber, ser capturado por ele. Um exemplo, recentemente evidenciado por Llewellyn Morgan, nos mostra o porquê. O poeta latino Lucílio (século II a. C.) escreveu que o povo romano foi "muitas vezes vencido em batalha, mas nunca em guerra" (praelio victus, non bello). Apesar de sua obra ter se perdido, essa citação, conhecida por meio de Nônio Marcelo (século IV d. C.), foi popularizada no Renascimento por Erasmo de Rotterdam, constituindo desde então um topos difundidíssimo. Tão difundido, aliás, que hoje é usado repetidamente – ignorando-se sua origem – em polêmicas contra a cultura ocidental. Assim fazia um documento vietnamita, segundo o qual "o Vietnã perdeu muitas batalhas, mas nunca uma guerra"; assim faz o Partido pela Libertação Islâmica (um grupo extremista que reivindica a reconstituição do Califado), segundo o qual "o Islã perdeu algumas batalhas, mas sempre venceu as guerras"; assim faz o nigeriano Dahiru Yahya, que ao defender a introdução em seu país da shariah como resposta a qualquer influência ocidental (e em especial da "cristandade latina") declara que, nos periódicos embates contra o Ocidente, o Islã "venceu e perdeu muitas batalhas, mas nunca perdeu a guerra". Essas invectivas contra o Ocidente se nutrem, contra sua vontade, de fragmentos e farrapos de cultura "clássica" ocidental. Ignoram sua origem, mas justamente por isso mostram até que ponto uma tradição cultural tida como derrotada ainda seja capaz de uma forma de vida subterrânea. Algo de similar poderia ser dito quanto à Nausicaa japonesa ou à citação homérica proposta por um talibã (cfe. capítulo I); mas igualmente pode ser dito do difuso citacionismo de imagens e textos "clássicos" que permeia a cultura ocidental. O instinto de reuso do antigo através de pequenos segmentos retirados de cada contexto histórico parece reintroduzir (tanto na Nigéria quanto na Itália) um uso da história per exempla, e não segundo uma concatenação de eventos estabelecidos pela investigação histórica e ligados por vínculos de causa e efeito; desse modo, as colunas dóricas de um edifício pós-moderno, as fotos publicitárias de carros com templos gregos ao fundo, as charges de David Levine que mostram George W. Bush vestido como um imperador romano, pertencem todas a um mesmo horizonte.

Um comentário:

  1. Enquanto isso o atrativo do meu blog eh "Salo or the 120 Days of Sodom". Situation!
    Bom te ver aqui... Tava reorganizando o meu blog e acabei entrando nos antigos para ver quem esta mantendo-se na blogosfera :)

    ResponderExcluir