Policarpo Quaresma não lia Álvares de Azevedo

(Originariamente publicado no Ars Rhetorica)


Deliciosa citação que encontrei no “Formação da Literatura Brasileira” de Antônio Cândido, um dos principais tomos das próximas semanas:
Falam nos gemidos da noite no sertão, nas tradições das raças perdidas das florestas, nas torrentes das serranias, como se lá tivessem dormido ao menos uma noite, como se acordassem procurando túmulos, e perguntando como Hamleto no cemitério a cada caveira do deserto o seu passado.

Mentidos! Tudo isso lhes veio à mente lendo as páginas de algum viajante que esqueceu-se talvez de contar que nos mangues e nas águas do Amazonas e do Orenoco há mais mosquitos e sezões do que inspiração: que na floresta há insetos repulsivos, répteis imundos, que a pele furta-cor do tigre não tem o perfume das flores – que tudo isto é sublime nos livros, mas é soberanamente desagradável na realidade. (Manuel Antônio Álvares de Azevedo,
 Obras)

Vênus purificadora

(Originariamente publicado no Ars Rhetorica)


Ao passo que conceituados acadêmicos seguem a sustentar que a mitologia romana era uma tradução da grega, aqui prestamos louvor a uma deusa muito omitida, Cloacina, regente dos esgotos. Antes dos comentários tornarem-se piadas escatológicas, cabe lembrar do mérito dos esgotos romanos para esta civilização da qual somos a descendência.

De provável origem etrusca e mencionada já por Lívio (iii, 48), Cloacina (ou, raro, Cluacina) é uma deusa que gradualmente tornou-se um sobrenome a Vênus e regia os rituais de purificação, por extensão também a Cloaca Maxima; segundo a lenda, durante a construção da mesma uma estátua sua fora descoberta pelos operários etruscos envolvidos. Em uma etimologia digna da tradição que inclui Isidoro e Heidegger, um certo Lactantius fazia-a resalir precisamente ao mais famoso entre os esgotos, desconsiderando a origem sustentada por Plínio, o velho, de que seu nome deriva do verbo “cluere” (“limpar, polir, purificar”) ou “como os antigos diziam purgare“, e do qual, por sinal, o próprio “cloaca” deriva:
Arbor ipsa in Europae citeriore caelo, quod a Cerauniis montibus incipit, primum Cerceis in Elpenoris tumulo visa traditur Graecumque ei nomen remanet, quo peregrinam esse apparet. fuit, ubi nunc Roma est, iam cum conderetur; quippe ita traditur, myrtea verbena Romanos Sabinosque, cum propter raptas virgines dimicare voluissent, depositis armis purgatos in eo loco qui nunc signa Veneris Cluacinae habet; cluere enim antiqui purgare dicebant. (Naturalis Historia, XV, xxxvi – grifo meu)
O Online Etymological Dictionary faz derivar “cluere” do PIE *klu- de mesmo sentido (pela curiosidade, no Isidro Pereira encontrei Κλύζω qual “açoitar com ondas; banhar, lavar, limpar” e nestas horas me falta um bom etimólogo por amigo). A derivação é confirmada pelo mito fundacional de que, após as sabinas raptadas prevenirem o derramamento de sangue entre Rômulo e Tito Tácio, ambos os exercitos teriam se purificado com brotos de mirta onde seria erigido o templo da Vênus Cloacina.


Já em época republicana e imperial, Cloacina era reverenciada neste pequeno santuário frente à majestosa Basilica Aemilia e diretamente sobre a Cloaca Maxima, aqui recriado a partir da moeda original acima:



A eleição de Cloacina como protetora do bem-comportado e puro sexo matrimonial não passa de um anacronismo que merece apenas esta nota de post-scriptum.

De minhas artes plásticas

(Originariamente publicado no Ars Rhetorica)


As postagens sobre artes plásticas parecem ter revelado um gosto estético distante: destas obras tenho, via de regra, a opinião sobre aquela literatura tão engajada e tão acadêmica que já nasce mal-parecida. Seu mérito é fundamentalmente histórico, não estético; são documentos, não monumentos.

De tal feita, a série continuará, mas permito um parêntese a alguns monumentos.

Da escultura clássica, de época já tardia: “Laocoonte e seus dois filhos”, Hagesandro, Polidoro e Atenodoro, século I
Da soibukoga (水墨画), a pintura oriental com tinta e água: “Paisagem de outono”, Sesshū Tōyō (雪舟 等楊), século XV
Da pintura mortuária de Al-Fayum, síntese egípcio-greco-romana: “Mulher”, autor desconhecido, séculos III-IV d.C.
Da arte bizantina, não numerosa: “Theotokos de Vladimir”, autor desconhecido, século XII
Das miniaturas: “Très Riches Heures du Duc de Berry (Janeiro)”, irmãos Limbourg, século XV
De Giotto (sim, merece uma categoria à parte): “Adoração dos Magos”, Giotto, século XIII
Do Rinascimento: “A lamentação sobre o Cristo morto”, Andrea Mantegna, século XV
Do Rinascimento: “A bela jardineira”, Raffaello (período florentino), século XVI
Do Rinascimento: “A deposição”, Michelangelo, século XVI
Do Renascimento setentrional: “Mãos que rezam”, Albrecht Dürer, século XVI
Do Rinascimento: “Anunciação Cestello”, Botticelli, século XV
Do Barroco: “Crucificação de São de Pedro”, Caravaggio, século XVII
Do Barroco: “Oficial e moça rindo”, Vermeer, século XVII
Do Barroco: “Velha fritando ovos”, Velázquez, século XVII


Do Romantismo: “Paisagem de inverno”, Caspar David Friedrich, século XIX

Da Escola de Barbizon: “Mulher com pérola”, Jean-Baptiste-Camille Corot, século XIX
Do Impressionismo: “Na terraça” ou “Duas irmãs”, Pierre-Auguste Renoir, século XIX
Do Neo-classicismo: “Madalena”, Antonio Canova, século XIX
Do Academicismo: “A lição difícil”, William-Adolphe Bouguereau, século XIX
Da Pop-art: “Moça se afogando”, Roy Lichtenstein, século XX
Dos quadrinhos: “Asterix, Obelix e Ideafix”, Albert Uderzo, séculos XX e XXI
(infelizmente tive de reduzir o post, havia bem mais obras previstas)

Obscenidades gregas

(Originariamente publicado no Ars Rhetorica)

…ou “minha descida irremediável ao não profissionalismo”.

Prestando homenagem ao Paulo, reuni as poucas fontes à disposição e selecionei alguns “palavrões” desta coletânea lingüística que chamamos de “grego clássico”. Em suma, trata-se da monumental “A History of Ancient Greek” editada por A.-F. Christidis (doações aceitas, por sinal) e um post do não menos valioso blog “Nestor’s Cup“, cuja fonte é certo artigo “Six Greek Verbs of Sexual Congress” de David Bain (1991).

A linguagem obscena, como sabiamente afirma Christidis, é necessária a qualquer comunidade: apesar de moralismos onipresentes que a contrastam, esta é uma maneira de estabelecer contato e favorecer a expressão, tanto para a criação de intimidade quanto para a intimidação de adversários e inimigos ou a ridicularização de oponentes. A relação necessariamente direta com as práticas sexuais é motivo para o papel histórico como um dos rituais de passagem na raiz da sociedade ocidental (e duvido seriamente que não o seja em todas as sociedades). Até mesmo imaginar que a altivez que a restringe seja uma particularidade nossa é pura tolice: Sermonides de Argos, por exemplo, escreveu sobre as “mulheres abelhas” que não freqüentam lugares ὄκου λέγουσιν ἀφροδισίους λόγους [óku légusin afrodisíus lógus] “onde se fala de sexo”.

O início mais sensato é aquele das próprias crianças: quanto as genitálias, tanto masculina quanto feminina, além dos costumeiros eufemismos quais ἀπόκρυφα [apókrifa] “escondido, oculto” e μόρια [mória] “parte, membro”, encontramos metáforas como γέρρα [guérra] “lugar fechado” e o extremamente popular κύων [kíoon] “cachorro”. É claro que há uma variedade de termos peculiarmente obscenos à disposição: para a genitália masculina, σάθη [sáthee] ou as mais ríspidas πέος [péos], κωλῆ [koolée] e ψωλός [psoolós]; a genitália masculina infantil, e provavelmente a masculina de dimensões menores em tons sarcásticos, era chamada de ὄφις [ófis] “cobra” e σαύρα [saúra] “lagartixa”, entre outros. O conhecido φαλλός [fallós] não era propriamente o pênis qual órgão sexual, mas a efígie de pênis utilizada em procissões religiosas; os sátiros a este relacionados foram batizados com expressões também relativas ao órgão sexual masculino, com nomes quais Τέρπων [Térpoon] “prazeiroso”, Οἴφων [Oífoon] “garanhão”, Πόσθων [Pósthoon] “com pênis de grandes dimensões” e Στύσιππος [Stísippos] “com uma ereção como de um cavalo”, dentre outros.

Para a genitália feminina, os termos literais são κύσθος [kísthos], κυσός [kisós] e, mais vulgarmente, ὔσσακος [íssakos]. As metáforas são especialmente relacionadas a animais e vegatais, como ἀηδονίς [aeedonís] “rouxinol” e λειμῶν [leimoon] “prado, campina”.

De qualquer modo, o termo fundamental para atos sexuais em grego (ou, em outras palavras, aquele que a maioria vai desejar aprender de cor) é βινῶ [binóo], para o qual a tradução que mantém a força de obscenidade é “foder” (diz-se que Sólon o teria utilizado em debates em oposição a ὀπυίειν [opinuíein], o sexo propriamente marital que na voz ativa é utilizado para o consorte, “assumir uma mulher”, e na voz passiva para a consorte, “ser desposada”). Como todos os demais termos deste post, é raro na prosa culta mas encontrado com certa freqüência em comédias, grafites, encantamentos, provérbios e sentenças; a variante βενῶ [benóo], por exemplo, vem de uma placa de bronze em Olímpia na qual são descritas as punições para quem praticasse atos sexuais dentro do templo.

Essencial e já tradicional é a citação de Aristófanes, Lisístra 934:
Μὰ Δί᾿ οὐδε δέομαι γ᾿, ἀλλὰ βινεῖν βούλομαι
(“Por Zeus, eu não quero um destes — mas quero foder!”).

É contudo provável que ao longo dos séculos do “grego antigo” o sentido tenha se especificado em certas ocasiões: Stratão, neste caso, limita o βινῶ ao sexo vaginal, contrapondo-o ao πυγίζειν [piguízein] masculino e menos vulgar, semântica reforçada por um tablete metálico que descreve os três orifícios feminínos aptos para o sexo, utilizando βινῶ para o sexo vaginal, πυγίζω [piguízoo] para o anal e λαικάζω [laikázoo] para o oral. Em compensação, há referências ao mesmo verbo em outros contextos, como a expressão βινεῖν στόματι [bineíin stómati] “foder com a boca”.

Como vimos a partir de Stratão, πυγίζω [piguízoo] é o termo utilizado para o sexo anal (vale contudo lembrar que o sexo masculino não se restringia ao anal, com ampla difusão do intrafemural, mas este é assunto para um post que fica, quiçá, para outra vez), derivado do relativamente trivial πυγή [piguée] (“traseiro”). Parece ter sido menos ofensivo que βινῶ, sendo utilizado apenas como repreensão ou protesto sem implicações diretamente sexuais (tal qual “vai te foder” em português); a exemplo, o termo foi encontrado grafado numa tigela, dirigido a quem pudesse pensar em furtá-la.

Em época bizantina λαικάζω substituiu βινῶ como termo geral para a prática sexual, mas é provável que inicialmente se restringisse apenas ao sexo oral praticado em homens. Quase todos os exemplos deste termo foram tramandados pela comédia ática; há exceções como um epigrama que descreve uma mulher idosa, fisicamente tão repulsiva que precisava se limitar ao sexo oral para obter a atenção de amantes, Luciano atribui a um homem efeminado o epíteto de λαικαλέος [laikaléos] em Lexiphanes e há uma ocorrência no relato do filósofo estóico Crisipo sobre uma lenda de Hera praticando sexo oral em Zeus.

Não por acaso, em sua magnífica resenha Diógenes Laertius diz que a linguagem adotada por Crisipo era mais próxima à das χαμαιτύποις [khamaitípois], “as que andam pelas ruas”, ou seja o mais baixo escalão de prostitutas, que à dos filósofos.

Entre os eufemismos para o ato sexual, cabe lembrar ποιῶ [poióo] “fazer”, συνευνάζομαι [sineunázomai] “deitar-se juntos” e παννυχίζω [pannikhízoo] “passar a noite”, além de um sem número de termos ligados à atividade rural e ao esporte, quais βόσκω [bóskoo] “alimentar” e κελητίζω [keletízoo] “cavalgar”.

Entre os termos não propriamente obscenos mas válidos a esta lista, cabe lembrar χαρίεντες [xaríentes] “libertino”, ἄστυτοι [ástitoi] “impotente”, ἡταιρηκῶς [eetaireekóos] “menino de aluguel” e a citação sobre uma cortesã chamada de δωδεκαμήχανος [doodekaméekhanos] “que conhece doze formas de amar”.

É evidente que as obscenidades não precisam ser limitadas à mera lexicalidade; é sempre possível divertir-se com cacofonias intencionais (principalmente para σκατός [skatós] “fezes, merda”) ou por meio de jogos semânticos como em Arquíloco:
ἡ δʹ ὥσπερ αὐλῶι βρῦτον ἤ Θρέιξ ἀνέρ
ἤ Φρὺξ ἕμυζε· κύβδα δʹ ἧν πονεομένη
(“Ela chupava como as Trácias e as Frígias [o fazem] com cerveja por um canudo, e estava curvada de tanta atividade”.)

Entartete Kunst, A Exposição – Parte I

(Originariamente publicado no Ars Rhetorica)

Em 30 de junho de 1930, tomando direção na luta à arte degenerada, Goebbels dera ordem para o confisco de toda obra do tipo. Estas foram mais tarde organizadas na torpe exposição de mesmo nome, Entartete Kunst, aleatoriamente mescladas à produção de diagnosticados doentes mentais (o que lembra tristemente as metodologias sobre Wain) e agrupadas sob dizeres quais “Revelação da alma racial judia”, “Fazendeiros alemães – uma visão Yiddish” e “A loucura torna-se um método”. Diversas foram as reações dos artistas degenerados: entre outros, exílio externo para Ernst, exílio interno para Dix e suicídio para Kirchner.

Eis uma amostra de tais obras, de ditos autores mas não necessariamente daquela exposição (inclusive uma fonte, em minha luta perene para difundir a tipografia como arte).

Jankel Adler, “Mann mit Pferd” (Homem com cavalo), 1929




Ernst Barlach, “The Magdeburger Ehrenmal”, ?









































Rudolf Bauer, “Allegro II”, 1918


























Herbert Bayer, fonte “Architype”, 1925


































Max Backmann, “Karneval” (Carnaval), 1943





Rudolf Belling, “Max Schmeling“, 1929



































Heinrich Campendonk, título desconhecido, 1918



































Lovis Corinth, “Pietà”, 1920



































Otto Dix, “Tropas avançando sob gás”, 1924





Lyonel Feininger, “Gaberndorf II”, 1924









































George Grosz, “Dia cinza”, ?


























Erich Heckel, “Retrato de um homem”, 1919









































Heinrich Hörle, “Arbeiter (Dritter Zustand)” [Operário (Terceiro estado)], 1923































Karl Hofer, “Os quartos escuros”, 1943












































Ernst Ludwig Kirchnew, “Rua de Berlim” (da série das prostitutas), 1913