Só um crânio, mas velho, com idade entre um milhão e trezentos mil e um milhão e quatrocentos mil anos, E há certeza de que se trata de um homem, quis saber, subtilmente, Joaquim Sassa, ao que Maria Dolores respondeu com um sorriso de entendimento, Quando se encontram vestígios humanos antigos, são sempre de homens, o Homem de Cro-Magnon, o Homem de Neanderthal, o Homem de Steinheim, o Homem de Swanscombe, o Homem de Pequim, o Homem de Heidelberg, o Homem de Java, naquele tempo não havia mulheres, a Eva ainda não tinha sido criada, depois criada ficou, Você é irónica, Não, sou antropóloga de formação e feminista por irritação. (José Saramago, A jangada de pedra, 1986).(Originariamente publicado no Ars Rhetorica)
Do estilo
Árduo seria discordar do Harold Bloom, quanto ao laureado partidário de novas Cortes de Tomar.
Qays enlouquecido
Nizami, pela tradução de Colin Turner, pela tradução de Marisson Ricardo Roso, Laila & Majnun (Jorge Zahar Editor, p. 125):
(Originariamente publicado no Ars Rhetorica)
Majnun invocou planeta por planeta, estrela por estrela, mas não recebeu resposta alguma. Os céus permaneceram calados, e a alma de Majnun gelou diante da insensível e fria beleza glacial dos astros. Os corpos celestes seguiram seus caminhos, desinteressados da situação de Majnun, inconscientes de sua aflição. Por que se preocupariam? Por que deveriam se interessar em ajudá-lo?
E então Majnun percebeu. Pela primeira vez tudo ficou claro. As estrelas não se importaram porque elas não poderiam se preocupar. As estrelas, assim como os grãos de areia sob seus pés, eram cegas, surdas e mudas! O espetáculo delas reluzindo era simplesmente um espetáculo. Sob aquela fachada esplêndida, eram apenas criaturas inanimadas, sem voz ou expressão. O que poderia significar o sofrimento de uma alma humana para elas?
E assim Majnun elevou sua face mais uma vez para os céus, mas agora, não para invocar as estrelas. ”Elas são meros vassalos como eu”, pensou ele. “E onde há vassalos deve haver um soberano. Se a criação não me responde”, cismou ele, ”talvez o Criador responda.”Não apenas a angústia de buscar o que perco sem o persa original; há também uma vontade, que não quero trair pela investigação, de ver no amigo de Layli um tutor dos amigos de Beatrice e Laura, e em suas corças e antílopes o lobo de Gubbio. O soberano é, afinal, o mesmo e os protagonistas desta fábula se conheceram, não por acaso, em uma escola.
(Originariamente publicado no Ars Rhetorica)
Sobre ler livros uma vez somente
(Originariamente publicado no Ars Rhetorica)
(Surrupiado do Laudator Temporis Acti, cuja qualidade e o título horaciano só podem causar inveja)
C.S. Lewis, Of Other Worlds: Essays and Stories (New York: HBJ, 1967), p. 17:
An unliterary man may be defined as one who reads books once only. There is hope for a man who has never read Malory or Boswell or Tristram Shandy or Shakespeare’s Sonnets: but what can you do with a man who says he ‘has read’ them, meaning he has read them once, and thinks that this settles the matter?
Um homem iletrado poderia ser definido como o que lê livros uma vez somente. Há esperança para um homem que nunca tenha lido Malory ou Boswell ou Tristram Shandy ou os sonetos de Shakespeare: mas o que se poderia fazer por quem diz ‘ter lido’ os mesmos, no sentido de que os leu uma vez e crê ter com isto resolvido a questão?
Eis o porquê da Commedia estar sempre à cabeceira.
Das pesquisas - I
(Originariamente publicado no Ars Rhetorica)
A maior diversão em ter uma efeméride destas são as pesquisas que trazem navegadores incautos a este porto. Morosos que querem se poupar tarefas (resumo de “A metamorfose-frank kafka”) e afeitos pelas mais singulares taras (prostitutas a foder nas florestas) aqui ancoram e, julgo, logo alçam suas velas para os ventos do nunca-mais.
Mas alguns que também não aguardo ao fugirem deixam a vontade de uma segunda visita. Como quem, guiado por Cloacina, esta manhã aqui veio buscar a “etimologia de venus”. E sendo a etimologia uma questão de honra…
O português ”Vênus”, como se sabe, foi tramandado por seu nome latino Venus. A deusa é a do amor sensual, e foi este quem a batizou: com efeito, venus era “amor, desejo sexual, amabilidade, beleza, charme”, vindo da base proto-indo-européia *wen-, “buscar, ter anseios, desejar, satisfazer-se” (veja-se, em sustentação, o sânscrito vanas-, “desejo”, vanati, “desejos, amores, vitórias”; o avesta vanaiti, ”ele deseja, ele é vitorioso”; o inglês arcaico wyscan, ”desejar”, relacionado a to wish). Em suma, Vênus tem uma remota raiz comum com “vencer”.
Mas Venus (latino, sem acento) é de interesse também pelo que veio em função dela. Que ”venéreo” e ”venerar” são derivados a própria intuição o indica, mas curiosa é a etimologia de “veneno”: mais que “substância que altera ou destrói as funções vitais”, como nos dá o Aurélio, o latino venenum era inicialmente uma poção de amor (motivada, exatamente, por Vênus), que algumas experiências de pouco sucesso devem ter prejudicado a reputação.
Nesse sentido, é tão amável quanto a etimologia de ”filtro”: a nossa aparelhagem para purificar líquidos tem sua origem no “filtro” como poção ou elixir (significado que ainda encontramos em registros mais altos, como em alguns parnasianos), cuja origem não poderia ser outra. “Filtro” vem do latino philtrum, adaptação do grego Φίλτρον [phíltron] vindo do verbo Φιλέω [philéoo], “sentir amizade, amar”, que encontrarmos, entre outros, na boa e velha “philosophia”, o amor pela sabedoria. O produto terminou por dar nome ao processo de seu preparo.
E não esqueçam do melhor dicionário etimológico on-line (infelizmente, só para o inglês):http://www.etymonline.com.
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